Entrevista com Ricardo Rocha Aguieiras

Por: Julio Marinho

Entrevista com o escritor, autor teatral e militante do movimento LGBT Ricardo Rocha Aguieiras. 

O paulistano Ricardo Aguieiras é um transgressor nato, um homem com uma inteligência acima da média. Tem uma língua ferina, é ácido e sarcástico por natureza, mas paradoxalmente é extremamente doce e generoso. Tão generoso que aceitou dar essa entrevista ao nosso blog.

A primeira vez que ouvi falar de Ricardo Aguieiras foi através da frase "Gays Idosos Também São (muito) Gostosos!". Fiquei tão impactado que comecei a pesquisar mais sobre o autor da frase, estampada em um cartaz que ele carregava como se fosse um estandarte pela Parada Gay de São Paulo de 2009. Descobri por exemplo que eu não fora o único a ser arrebatado pelo ineditismo da atitude.

Ricardo despertou a curiosidade de jornais, revistas, site e a própria organização da Parada, que inclusive lhe cedeu espaço em um trio elétrico. Foram entrevistas e reportagens a veículos de comunicação como o "G1", "TV UOL", "Bom dia Brasil" e até o conservador "Estadão", que também se rendeu a ousadia de Ricardo.

Por conta disso tudo, resolvi produzir essa entrevista. 

Militância:


Nossos Tons - O partidarismo ajuda ou prejudica a militância LGBT?

Ricardo - Prejudica. Partidos, na verdade, não estão interessados com a Causa LGBT ou com nossos Direitos. Eles tem o cronograma deles, as questões deles, a politicagem permeando tudo e acabamos ficando em último lugar, quando ficamos. Temos que ter autonomia para falarmos o que quisermos e nos posicionarmos. Durante muito tempo o Movimento LGBT foi totalmente tomado pelo partidarismo, ficou difícil a discussão, autonomistas foram muito atacados. Agora a coisa parece ter melhorado muito, com movimentos de rua, marchas e o que ocorre nas redes sociais , que evitam a cooptação partidarista.


Nossos Tons - Há muito ainda o que se fazer em termos de direitos dos dos cidadãos LGBTS, e qual seria a conquista mais importante no momento?

Ricardo - Há, sim, muito por que lutar. Principalmente pela criminalização da homofobia e os Direitos das pessoas trans, ainda muito vulnerabilizadas. Lutar pelo Estado Laico, que está profundamente ameaçado. Agora, evidentemente, tivemos uma grande conquista que abre um monte de portas, ou seja , as vitórias no STF e no STJ sobre o Casamento Civil entre pessoas do mesmo sexo, foi algo que nos encheu de esperanças e deu muita força para a luta.


Nossos Tons - Qual a sua opinião em relação a consciência política dos homossexuais brasileiros?

Ricardo - Olha, não gosto de criticar as pessoas nesse ponto, por que neste país elas não são ensinadas a pensar por si ou refletir. Recebem tudo pronto, inclusive os preconceitos dos pais e da sociedade. Claro que é ruim, mas não posso exigir nada delas e sim do Governo e das famílias, no quesito Educação. E , infelizmente, a militância LGBT não se comunica com suas bases. Porém, acredito que as Redes Sociais têm feito um excelente trabalho nesse sentido que ainda não foi perfeitamente avaliado.


Nossos Tons - Você um dos pioneiros no movimento gay nos anos 70, participando desde a fundação do grupo Somos. Como vê o movimento LGBT hoje?

Ricardo - Existia mais paixão, claro, como não tínhamos nenhuma outra saída perante a ditadura militar, só nos restava lutar e lutar. Hoje, espera-se tudo do Poder Público, as ações são nesse sentido. Me incomoda também por que parece um movimento que não aceita críticas, mesmo as vindas de seus integrantes. Mas me agrada termos tanta gente envolvida, pessoas de grande calibre estão surgindo e fazendo a diferença. Espero que não sejam cooptadas pelos partidos e, se forem, que insistam lá dentro com a causa LGBT, como vem fazendo o Jean Wyllys.


Nossos Tons - Você acha que até os anos 80 havia mais aceitação em relação aos homossexuais, ou isso acontecia porque éramos quase invisíveis para a sociedade?

Ricardo -  Aceitação? Não, não tínhamos aceitação alguma. Apenas a invisibilidade, unida com a criatividade dos estigmatizados, fazia com que encontrássemos recursos para irmos vivendo e para o nosso prazer. Mas ser invisível é algo bem ruim, também. Exigia um policiamento constante, era sufocante.


Nossos Tons - Era mais fácil ser gay nos anos 70 e 80, ou agora em pleno século XXI?

Ricardo -Agora é bem mais fácil, claro. A Cultura subterrânea e a marginalidade, têm , sim, seus atrativos, a Filosofia toda está aí para confirmar isso...risos...mas é muito legal termos  o poder da escolha, saber se queremos ficar na margem - que é, apesar de falarem o contrário, um posto privilegiado para enxergar o mundo, ou se queremos nos inserir na sociedade. Escolher é muito bom, também.


Nossos Tons - O movimento LGBT pode ser considerado "contra-cultura"?

Ricardo - Hoje? Não, hoje não mais. O movimento luta por Direitos , por participar da democracia e da sociedade que aí está. Portanto, luta por inserção, aceitação. A ideia utópica da contra-cultura, muito bela em si, era de que poderíamos usar a força transgressora da homossexualidade para criar  um novo mundo, mas isso se perdeu, foi um sonho, um sonho grandioso. Recentemente, a Teoria Queer procurou recuperar um pouco disso e questionar, mas ainda é algo novo, pouco estudado dentro da militância  - o movimento erra, inclusive, em não se aproximar da teoria e dos teóric@s, penso que seria mais um apoio na luta contra a homofobia. Individualmente, eu tento manter minha transgressão à cada dia, inventar um novo gay e um novo Ricardo à cada dia, é uma briga...risos...

Nossos Tons - Como o surgimento da AIDS influenciou o movimento LGBT?

Ricardo - Ummmmmmm, essa é uma questão muito cara para mim, tem muita coisa ruim, mas tem muita coisa boa, também, aliás, coisas lindas. A Aids levou embora pessoas magníficas, brilhantes, grandes artistas e isso dói muito. Pessoas imprescindíveis morreram no auge. Mas a Aids foi a maior coisa que aconteceu no mundo para combater a invisibilidade do homossexual. Não havia mais como esconder. E isso foi bom, foi ótimo, na verdade. A Aids foi, sim, uma revolução. Tudo foi questionado, discutido, pensado: sexualidade, medicina, sociedade e o uso do corpo; solidariedade e amor, foi uma grande oportunidade que tivemos de repensarmos nossa participação como humanos, no mundo. Houveram revoluções na Ciência, o mundo pode ser dividido antes e depois da Aids. Mas, pelo lado ruim, a Aids foi muito usada pelas religiões fundamentalistas e pelo conservadorismo. Ainda é, aliás.


Nossos Tons - Esta geração pós AIDS esta mais careta?

Ricardo - Sim, muito careta. A transgressão acabou, tudo inicia legal, mas depois pasteuriza, fica inócuo, é absorvido e banalizado pela sociedade canibalista, que teme violentamente a transgressão. Mas não acho que é por causa da Aids, apesar dela ser usada como uma desculpa para o controle social  e para comandar o corpo das pessoas. O conservadorismo já vinha se manifestando, o individualismo e o egoísmo. Não há mais empatia. Não olhamos mais o próximo como um igual a nós, com as mesmas dores e prazeres. Para a grande maioria das pessoas a luta pela vida ficou algo tão difícil, têm que trabalhar tanto e depois...morrer. Que projeto de vida é esse? Como o trabalho pode ser mais importante que as amizades ou o prazer? Ninguém tem mais tempo para o próximo. Os sortudos e sortudas que podem usar a internet nos seus espaços de trabalho ainda buscam algum contato com amigos. Mas isso não substitui o contato pessoal, é frustrante. Eu ainda carrego um bocadito de esperança de que um dia a transgressão volte.


Literatura:

Nossos Tons - Quais seus autores preferidos?

Ricardo - Tantos... risos... Mas não posso deixar de citar o Nélson Rodrigues, já li toda a sua obra, bem mais de uma vez. Clarice Lispector, magnífica. O João Silvério Trevisan, que é o nosso maior escritor brasileiro, hoje. Dos estrangeiros, gosto muito do Charles Bukowski . Por sua alma dilacerada e pela honestidade como lida com o leitor.  Dos "romances gays" , tem um maravilhoso e revolucionário, que recomendo : "Um Estranho em mim", do psicanalista Marcos Lacerda. E Kadu Lago, ainda tão novo, escreveu um emocionante depoimento de dor, amor, assumir-se e de adeus em "Confissões ao Mar".


Nossos Tons - A internet na banaliza ou democratiza a literatura?

Ricardo - As duas coisas. Me cansa ver gente toda a hora citando a Clarice Lispector, na maioria das vezes os textos nem são dela. Isso chega a beirar o absurdo e é bem um retrato da mediocridade em que vivemos, quem conhece Clarice e sua escrita, sabe que ela nunca escrevia as bobagens cheias de "verdades" que publicam e dizem que é dela. Já briguei no facebook por isso. É um exemplo de banalização. Agora, claro, muita gente tem tido mais acesso aos escritos e à criação literária,  pela internet, antes não possível. Agora, se isso leva as pessoas a refletirem, como deveria, não sei, deixo aí a dúvida.


Nossos Tons - O que um texto precisa para arrebatar o leitor?

Ricardo - Pergunta difícil...risos...não sei, por que aí entra o gosto individual do leitor. Mas, para mim, o texto tem que ser intenso, extremado, dilacerado, passional, onde eu consiga perceber que o autor ou autora estão sendo honestos e não tentando enganar o leitor/a.


Nossos Tons - Você pensa em reunir sua obra?

Ricardo - Já fiz isso, com meus contos. Selecionei os melhores, para mim, e coloquei num livro só, o que facilita o registro na Biblioteca Nacional. Na verdade, não sei o que fazer com o que crio. Eu teria que ter a coragem de me afastar uns bons anos da militância para me dedicar somente aos meus escritos, montar minhas peças, lançar os livros. Mas, além do medo, tanto do fracasso como do sucesso, sou muito cobrado para continuar com a militância que faço. E eu ainda não aprendi a juntar as coisas. Um dia eu morro e alguém acha meus escritos que estão guardados em dvd e os lança e será um grande sucesso...risos... dando uma de convencido...risos... afinal, de ilusão também se vive...risos


Nossos Tons - Sobre o teu processo criativo. Como surgem as ideias?

Ricardo - Tento, na medida do possível, manter-me informado sobre tudo. Isso ajuda na hora de termos ideias. Mas eu tenho um "processo" próprio... risos... só começo a escrever depois de ter a história totalmente pronta na cabeça. Isso me facilita.


Nossos Tons - Ainda existe interesse pela literatura marginal, ou ele vem se perdendo por conta de uma literatura mais "comercial"?

Ricardo - Existir, existe. Sempre há os que insistem e ainda bem. Tenho um amigo que continua lançando seus livros tudo por um processo artesanal, xerox etc. Mas, claro, é muita doação, ele não ganha nada por isso. E ainda é olhado torto, pessoas não acreditam num livro assim, sem capas belíssimas e todo em papel couchê etc. Então fica uma contradição, por que quem escreve quer ser lido. Hoje, só adoram os que foram marginais em sua época, aí os escritos desses autores, já mortos, são lançados em obras de luxo. Vira modismo.


Nossos Tons - Você tem alguns ótimos textos, e que estão meio esquecidos em blogs "apócrifos", já pensou em produzir um novo blog e relançá-los?

Ricardo - O que seria um "blog apócrifo"? risos... No início dos blogs eu tive um que tinha mais de 70 comentários à cada post. No meu último, que, por gozação com a situação de penúria se chamava "Dividindo a tubaína"...risos, eu não tinha mais que dois ou três, quando tinha. Não sei o que ocorre: as pessoas trabalham demais e não têm tempo para ler mais, as pessoas querem ler todos os blogs que seguem ou a "era blog" morreu. Vi blogs da mais alta qualidade acabarem e isso foi dolorido para mim. Vejo alguns ícones, cujos blogs são um sucesso, todo o mundo lê senão se sente "por fora", mas escrever como essas pessoas escrevem não é o meu estilo. Então o que eu penso seria mais um site com o meu nome e me lê quem me conhece e já gosta. Talvez faça um.


Nossos Tons - Quem é Ricardo Rocha Aguieiras?

Ricardo - Nossa, pergunta difícil. Eu mesmo ainda não sei...risos... Sei que ainda estou em construção que só irá parar com minha morte. Não gosto de verdades absolutas em nada e nem em ninguém. No fim da adolescência eu fiz um projeto de mim mesmo. Ora, consigo mantê-lo. Ora, eu mesmo falho e erro. Na verdade, sou um ser como qualquer outro, com coisas boas e coisas ruins, não convivo confortavelmente comigo mesmo, não... a briga é feia...risos


Nossos Tons - Ricardo, Foi enorme prazer conversar contigo. Muito obrigado por essa oportunidade de te conhecer um pouquinho mais.

Ricardo - Estou as ordens! Sabe que a admiração é mutua...

Comentários

  1. Que delícia de entrevista! Parabéns ao Nosso Tons e ao Ricardo Rocha por compartilharem tanta coisa boa aqui. Compartilho com a visão do Ricardo sobre diversas coisas expostas aqui. É um prazer ver que ainda existe gente que se insere sem se diluir.

    Beijo para os dois!
    Sergio Viula

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  2. Uow! Gostei MUITO dessa entrevista, muito esclarecedora e incentivadora, pelo menos para mim, que sou muito novato na militância por direitos LGBT´s. Obrigado, Ricardo, já "desconfiava" de que tinha muito conteúdo em ti, o jantar no último dia da conferência mostrou um pouco disso, e essa entrevista me mostrou ainda mais.
    Grande abraço!

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  3. Muito boa a entrevista! Parabéns a ambos!
    Abraço, Ricardo Rocha!!!

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  4. O que ele chama de transgressão, Pólux?

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  5. Isaias, no contexto da resposta, o oposto ao conservadorismo atual, que se manifesta inclusive no meio gay. Claro que a discussão é bem mais ampla, mas nessa entrevista a proposta era fazer um apanhado geral das opiniões do entrevistado. Quem sabe no futuro não possamos aprofundar mais o assunto?

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  6. Sérgio, Yurin, Kadu e Isaias, muito obrigado pelos comentários.

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  7. Nosso Tons, parabéns pela entrevista e obrigada por esse espaço cedido ao meu irmão. Ricardo, entrevista deliciosa de ler, um resumo de vc! Parabéns tbm.
    Helô.

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  8. Ricardo Rocha é um luzeiro a se olhar quando estamos por demais embotados das propostas de normalidade, quando estamos a nos acostumar com as situações que não podemos ou não sabemos mudar. Transgressor nato, provavelmente não se sentiria à vontade numa sociedade em que a liberdade de ser e se expressar fosse garantida às custas de uma normalização forçada e moralista. Aliás, Aguieiras é um arguto observador da moral vigente, e um crítico mordaz das contradições que mantém os privilégios da maioria heterossexual em detrimento das minorias. Amo Ricardo Rocha Aguieiras.

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  9. Mas, querer certos direitos, como o de se casar na igreja, tal qual heterossexuais fazem, e adotar crianças, de semelhante forma não seria conservadorismo?

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  10. Isaias, essa de casar em igrejas é novidade para mim. Quanto a adoção, não. Coservadorismo seria negar esse direito, ou, "conservar" o estado atual das coisas.

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  11. Alegria imensa em ler Ricardo Aguieiras. Li e reli. Ricardo é imenso, é intenso, é profundo.

    Preciso dizer que muito pouca gente teria coragem de dizer isso:

    "a Aids foi a maior coisa que aconteceu no mundo para combater a invisibilidade do homossexual. Não havia mais como esconder. E isso foi bom, foi ótimo, na verdade"

    Mas Ricardo chega sempre com coragem.

    Por último, repito o que li há pouco ele dizendo para alguém que o admira:

    "é justamente por causa de gente como você que a gente continua"

    Beijo enorme!

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  12. RICARDO AGUIEIRAS03/11/2011, 21:02

    Sérgio Viúla, acho que nunca nos falamos, mas é uma honra tê-lo aqui. Sua luta e reviravolta, exemplares, faz a cabeça de muita gente e você é essencial. Obrigado! Yúrin, querido, a admiração no jantar foi mútua e você é lindo! Kadu é um daqueles grandes talentos, ainda nos dará tantas surpresas boas, te amo! Alex Mendes, a paixão é antiga. Você é gênio! Gênio na mais pura acepção da palavra. Isaias, eu não te conheço ainda, mas obrigado por sua visita e por suas provocantes perguntas, já muito bem respondidas pelo Pólux. Só reforçando: nós, LGBT's, não queremos casar na igreja, não. Vivemos em um Estado Laico e o que queremos - e já temos quase como Lei - é casar no Civil, em Cartórios, perante um juiz, não perante pastor ou padre. Se bem que tem pastores de Igrejas Inclusivas fazendo um belo trabalho de inclusão e defesa. Quando se luta por casamento civil igual ao dos heterossexuais, luto pelo direito igual. Agora, tenho também o direito da escolha, se quero ou não usufruir desse direito, o que não pode acontecer é ele me ser negado, somos iguais. Você tem todo o direito de questionar e exigir coerência das minhas falas e do Movimento LGBT. Afeto, emoção e beijos em todos e obrigado!

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  13. Muito interessante a entrevista. Parabéns pelo seu trabalho em pró dos movimentos da diversidade.
    Conte comigo.
    Espero que leia meu livro Viagem Solitária da editora Leya.
    Abraços,
    joao w nery

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